Amanhã é Sexta-Feira Santa, a Sexta-Feira da Paixão. Essa "paixão", como se sabe, é a Paixão de Cristo, ou seja, o martírio de Jesus Cristo. E por que se usa a palavra "paixão" para nomear esse martírio?
É claro que a primeira coisa que nos vem à mente quando ouvimos a palavra "paixão" é a ideia do sentimento tórrido ou, como diz o "Houaiss", do "sentimento, gosto ou amor intensos a ponto de ofuscar a razão".
Pois a palavra "paixão" vem do latim, da família de "pati", que significa "sofrer", "suportar". A paixão, portanto, é o sofrimento, a dor, o padecimento. A primeira definição de "passione" ("paixão") que o dicionário italiano "Garzanti" dá é justamente esta: "Grave padecimento físico". Esse ótimo dicionário classifica esse uso como "antigo".
A esta altura, muita gente certamente já relacionou as dores das paixões tórridas (tão vulgarizadas e banalizadas hoje em dia) com o significado original da família da palavra "paixão". Pois é isso mesmo. Se o caro leitor não sabe, a palavra "patíbulo" (que o "Houaiss" define como "palanque ou estrado montado em local aberto para sobre ele executar condenados"; "forca, especialmente quando montada num palanque ou estrado") é da mesma família de "paixão" (do latim "pati", "patio"). Como se vê, a paixão e a dor andam lado a lado desde tempos imemoriais, o que a alguns pode parecer contraditório ou paradoxal, mas...
Por falar em paixão, paradoxos e contradições, é impossível não citar "O Último Poema", antológica obra de Manuel Bandeira: "Assim eu quereria o meu último poema. / Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais / Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas / Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume / A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos / A paixão dos suicidas que se matam sem explicação".
Se você não conhecia o significado original de "paixão", como entende agora o último verso do poema de Bandeira? E como o relaciona com a Paixão de Cristo?
Num tempo em que a humanidade parece fugir do contraditório como o Diabo foge da cruz, ou seja, num tempo em que o maldito PU (Pensamento Único) é a norma, a regra, aceitar que uma mesma palavra possa ter sentidos aparentemente tão paradoxais soa como algo que demanda esforço hercúleo.
Como uma coisa puxa outra, é impossível resistir à tentação de citar alguns versos do também antológico poema "Não se Mate", de Carlos Drummond de Andrade: "Carlos, sossegue, o amor / é isso que você está vendo: / hoje beija, amanhã não beija, / depois de amanhã é domingo / e segunda-feira ninguém sabe / o que será. / Inútil você resistir / ou mesmo suicidar-se. / Não se mate, oh não se mate. / Reserve-se todo para / as bodas que ninguém sabe / quando virão, / se é que virão".
E mais Drummond (de "Consolo na Praia"): "Vamos, não chores. / A infância está perdida. / A mocidade está perdida. / Mas a vida não se perdeu. / (...) / A injustiça não se resolve. / À sombra do mundo errado / murmuraste um protesto tímido. / Mas virão outros. / Tudo somado, devias precipitar-te, de vez, nas águas. / Estás nu na areia, no vento... / Dorme, meu filho".
Amanhã é Sexta-Feira Santa, Sexta-Feira da Paixão, da Paixão de Cristo. Dorme, meu filho. É isso.
Pasquale Cipro Neto é professor de português desde 1975.