Há 25 anos, Lula x Collor
“O teeeeempo passa…”, como dizia o lendário narrador esportivo Fiori Gigliotti, que era daquele tempo.
Pois é, amigos, está fazendo exatamente 25 anos que fomos às urnas eleger pelo voto direto nosso presidente da República, pela primeira vez desde a ditadura, que durou mais de duas décadas. Foi também a primeira vez que a minha geração pode exercer este direito. Antes disso, a última vez em que isso tinha acontecido foi em 1960, o ano em que meu pai morreu, e elegemos Jânio Quadros, que renunciou oito meses após a posse. O vice João Goulart assumiu o lugar dele e foi derrubado por um golpe cívico-midiático militar, em 1964.
Faz tanto tempo que já tinha até me esquecido desta efeméride. Quem me lembrou foi o colega Vitor Nuzzi, da Rede Brasil Atual, ao me entrevistar sobre o que aconteceu no inesquecível ano de 1989. Dá para passar vários dias contando histórias vividas naquela campanha, que colocaria frente a frente meu amigo Lula e Fernando Collor, o “caçador de marajás”, no segundo turno, disputado palmo a palmo até o final. Collor teve 35 milhões dos votos e Lula ficou com 31 milhões.
Como os leitores não terão tempo nem saco para ler um texto muito longo sobre episódio tão antigo, desisti de fazer uma pesquisa nos meus próprios livros para relembrar aqui apenas fragmentos da minha memória afetiva.
Subi neste trem no final de 1988, ao voltar de uma viagem a trabalho, quando era repórter do finado “Jornal do Brasil”, e resolvi fazer uma visita ao Lula, então deputado constituinte, que estava se recuperando de uma cirurgia no apêndice, no Hospital Sírio-Libanês.
Sem maiores delongas, como é do seu estilo sertanejo, depois de falar rapidamente da cirurgia, foi direto ao assunto:
“Te prepara, Ricardinho (chamavam-me assim quando era jovem). Te prepara porque no ano que vem eu vou ser candidato a presidente da República e você vai ser meu assessor de imprensa”.
Tomei um susto e, a princípio, desdenhei do convite, ou melhor, da intimada.
“Não vai dar, Lula. Eu nunca fui assessor de imprensa, não gosto disso, sou repórter especial do JB, ganho bem, estou satisfeito no jornal, não sou nem filiado ao PT…”, ainda tentei resistir.
“Não enche o saco, pô. Eu também nunca fui candidato a presidente da República”.
De fato, não só ele não tinha sido candidato, como sequer havia votado para presidente, já que temos mais ou menos a mesma idade.
Incentivado por colegas, advertido por outros sobre os riscos para a minha carreira, e com todo o apoio da família, antes do final do ano já estava trabalhando com Lula na campanha, ganhando umas dez vezes menos do que no jornal, mas estava feliz. A direção do JB, graças ao Ricardo Setti, tinha me concedido uma licença não remunerada.
E lá fomos nós rodar o Brasil de ponta a ponta, de cabo a rabo, várias vezes. Quase seis anos após o movimento das Diretas Já, o Brasil parecia palco de uma grande festa democrática, agora com final feliz. Em sua matéria no site da RBA, Nuzzi registra que eram 22 candidatos (hoje temos 11) para 70 milhões de brasileiros aptos a votar, metade do atual eleitorado. Não existia celular, nem internet, nada disso, não tínhamos jatinho nem grana, e até alugar uma casa para instalar o comitê foi uma novela. Era tudo feito no gogó, na unha e no papel.
Para vocês terem uma ideia do clima na época, no mesmo ano de 1989 em que cairia o Muro de Berlim, por aqui vivíamos ainda os tempos da Guerra Fria. “Conservadores assombravam a população com fantasmas como o comunismo (…) A eleição de 1989, para o conservadorismo, ainda acenava com a ameaça esquerdista “Brizula”, junção dos nomes de (Leonel) Brizola e Lula”, escreveu Vitor Nuzzi.
Fui falar com um empresário amigo meu, dono de vários imóveis, para ver se ele emprestava ou alugava alguma casa para instalarmos o comitê, mas ele negou na hora, alegando que, se o Lula ganhasse a eleição, tomariam a propriedade dele. “Era tudo muito difícil. O que nos animava era a militância. Era tudo muito improvisado. Muitos comícios… Estou cansado até hoje… E também era uma grande festa, que, para mim, pareceu uma continuação da Campanha das Diretas. A gente sabia que estava participando de um momento histórico”, lembrei ao repórter.
Por absoluta falta de aptidão para o novo ofício, brigava muito com o Lula quase todo dia. Logo em minha estreia na função de assessor, interrompi uma gravação de TV porque não tinha gostado de uma palavra usada pelo candidato e pedi para começar tudo de novo. Em Rio Branco, no Acre, durante um Encontro dos Povos da Floresta, onde conheci Marina Silva, interrompi um discurso de Lula para informa-lo do assassinato de um seringueiro. “Nunca mais me faça isso na vida. Você estragou meu discurso, esqueci o que estava falando…”.
A grande diferença que sinto em relação à campanha presidencial de agora, é que, em 1989, para onde a gente fosse, o povo estava nas ruas, fazendo comício no meio do mato ou nas beiras dos rios na Amazônia. Caminhadas, carreatas, comícios-relâmpago ou monumentais showmícios (mais tarde proibidos), muitas bandeiras, buzinas, faixas, adesivos por toda parte, pessoas cantando os jingles de campanha, camisetas dos candidatos, ninguém ficava indiferente, e a gente não parava nem para dormir nem para comer.
Esse último item era o principal motivo das minhas divergências com o candidato. Alegava para Lula que ficar muito tempo sem comer deixa a gente com mau hálito e o Tancredo Neves, de tanto querer ser presidente, descuidou da saúde, e morreu na véspera da posse.
Tinha dia que acordava num lugar que não lembrava qual era e nem o que tinha ido fazer lá. Passei praticamente o ano todo fora de casa. A equipe de imprensa na primeira fase era formada por mim mesmo, depois dobrou, quando chegou o incansável Sergio Canova para me ajudar. O esquema funcionava assim: eu acompanhava o candidato em todas as viagens e ditava pelo orelhão, de onde estivesse, um relato das atividades do dia para o Canova, em São Paulo, que distribuía o material por telex para as principais redações.
Apoiado pela grande mídia, na falta de opção melhor, Collor espalhava o terror pelo país, ameaçando com um “derramamento de sangue”, caso Lula ganhasse a eleição. Cada vez que eu conseguia passar um fim de semana no meu sítio, em Porangaba, voltava mais assustado: os vizinhos estavam com medo de perder suas terras, que seriam divididas com os mais pobres, assim como suas galinhas, cavalos e bicicletas, e o que mais tivessem. A boataria era terrível. Nos centros urbanos, a conversa era que Lula tomaria e dividiria casas e apartamentos “com a baianada”, e até quem tinha “carro próprio” corria riscos.
Foi uma tremenda baixaria até o final. “O Lula nunca deixou responder no mesmo nível. Ele nunca aceitou o vale-tudo”, recordei na conversa com Nuzzi. Para enfrentar a superestrutura de marketing e a frota de jatinhos do adversário, contávamos com um pequeno exército brancaleone, indo todo fim de noite a jantares para “angariar fundos”. “Era um grande mutirão. Tinha muitos voluntários da grande imprensa que nos ajudavam na produção dos programas. E todo mundo dava palpite. Era mais amador, mais coletivo”.
Esta, com certeza, deve ter sido a última campanha romântica da política brasileira, sem cabos eleitorais remunerados, marqueteiros de grife, caminhões de dinheiro, frotas de jatinhos e helicópteros. Foi praticamente uma continuidade da Campanha das Diretas, com os mesmos líderes políticos nos nossos palanques. No segundo turno, só faltou o velho doutor Ulysses, um erro político, que mais tarde Lula admitiria.
Hoje, Collor, impichado em 1992, é um fiel parceiro do PT na base aliada do governo e está praticamente reeleito senador por Alagoas. Lula, duas vezes presidente, é o principal cabo reeleitoral de Dilma Rousseff, com chances de ganhar já no primeiro turno.
Por falar nisso, nem comentei as últimas pesquisas do Datafolha e do Ibope divulgadas na noite desta terça-feira, que mostram Dilma abrindo a vantagem, tanto no primeiro como no segundo turnos, mas não tem cabimento, nestes meus tempos de multimídia, repetir aqui por escrito o que comentei ontem com o Heródoto Barbeiro no Jornal da Record News, até porque, não mudou nada de lá para cá.
Perdão, leitores, acabei escrevendo demais e, olhem, não passei nem do aperitivo. Para quem se interessar, mais histórias sobre esta campanha presidencial pioneira após a redemocratização podem ser encontradas no meu livro de memórias: Do Golpe ao Planalto – Uma vida de repórter (Companhia das Letras, 2006).
Apesar de tudo, como vocês podem constatar neste livro, o Brasil de hoje é outro país _ muito melhor, em todas as áreas, quaisquer que sejam os índices sociais e econômicos consultados. Só permanecem os mesmos o apodrecido sistema político-partidário-eleitoral e os métodos dos donos da mídia familiar e seus porta-vozes.
Dos presidentes civis que tivemos de lá para cá, cada um escreveu seu capítulo nesta história da jovem democracia brasileira, que é de todos nós: Sarney consolidou o regime democrático, Collor abriu os mercados, Itamar e FHC garantiram a estabilidade econômica com o controle da inflação, Lula e Dilma promoveram a inclusão social e deram início a um processo de distribuição de renda. No domingo, já iremos para a nossa sétima eleição direta no pós-64.
Falta muito ainda para vivermos num país civilizado, justo e decente, como nos mostra a atual campanha eleitoral, mas valeu a pena ter vivido estes últimos 25 anos de plena democracia, esta que todos nós estamos ajudando a construir.
Vida que segue.
Ricardo Kotscho * – * Blog Balaio do Kotscho
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